“Oh, meu corpo, faça de mim um homem que sempre questiona!”
DA SILVA, Carla L. L.*
Paráfrase – E de mim uma mulher que a cada dia , de forma incessante tenha a curiosidade na
busca de compreensão de mim mesma e do mundo , expressão nos questionamentos!”
Resumo- O presente ensaio tem como propósito de gerar a reflexão e
questionamentos acerca da necessidade do Brasil, que foi o primeiro país a
importar em escala “peças” de escravizados da África e que praticou o
tráfico de escravizados da África por mais tempo e que foi o último a abolir o
tráfico e o sistema escravagista, em se submeter à Justiça da Reparação ,
de modo a reconhecer seu papel no sistema escravagista e as sobrecargas
de tudo que significou enquanto holocausto pelas gerações, de um racismo
naturalizado e presente nas mentes e nas realidades complexas das
violências recorrentes perpetradas em face da população preta. Está no
tempo de um diálogo estruturante pela Sociedade, pelo Estado, de modo
que haja espaço para adoções de responsabilização pelos crimes e danos
cometidos em face da condição humana de pretos e pretas, e, a
desconstrução das impunidades perpetradas em face das gerações que
permaneceram no Brasil, de modo a oportunizar no processo , no debate um
novo pacto social, e, que por mais que alguns intelectuais pretos e pretas
não aprovem o pensamento, para a condição humana.
Palavra chaves– escravização de pretos e pretas, africanos(as), tráfico
transatlântico, justiça de transição, não reconhecimento condição humana.
Novo pacto social.
REGIME ESCRAVAGISTA BRASILEIRO: MEMÒRIA E VERDADE
Uma pesquisa realizada em conjunto pelas Universidades de Emory, em Atlanta e a Universidade de Hull, na Inglaterra (2), com base na
análise de diários de bordo de 5.200 navios que realizaram mais 35.000 viagens marítimas de tráfico de escravizados, deu origem a um banco de dados sobre a escravização dos mais de 12,5 milhões que foram transportados da África para as Américas no período de 1500 e 1856.
A pesquisa constatou que o Brasil foi o país que mais recebeu pretos e pretas escravizados. Cerca de 5.800.000 milhões, ou seja, mais de 60% do total de negros e negras escravizados(as) que atravessaram o Atlântico, – dos quais mais de 300 mil morreram na travessia devido a fome, maus tratos e doenças-, tiveram como destino final o Brasil. No Rio de Janeiro foram desembarcados, em sua maioria nos Cais do Valongo, Copacabana, Botafogo e em outros atracadouros do Centro do Rio, mesmo que em menor escala, cerca de 2 milhões de escravizados(as). Em um Rio de Janeiro com a economia inteiramente voltada para o sistema escravagista, com mercados financeiros e seus bancos especializados no financiamento do tráfico, bem como companhias seguradoras para os riscos das viagens. Apresentava o Rio importantes comerciantes com capital para a aquisição de escravizados para mão de obra junto a fazendas, mineração, prostituição e outras atividades nas quais se costumava alocar a mão de obra escravizada. Não há, contudo, como bem ressalta a matéria da entidade Gelédes (3) ,como tratar do sistema político-econômico escravagista sem falar do poder apostólico sustentado pelas bulas papais, cuja mais conhecida é a dirigida a Dom Afonso V de Portugal, publicada em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V, que defendeu a escravização de negros (as) nos termos abaixo copiado:
(…) com nossa Autoridade Apostólica, plena e livre
permissão de invadir, buscar, capturar e subjugar os
sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e
inimigos de Cristo, onde quer que estejam, como também
seus reinos, ducados, condados, principados e outras
propriedades (…) e reduzir suas pessoas à perpétua
escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito
e de seus sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo,
os supramencionados reinos, ducados, condados,
principados e outras propriedades, possessões e bens
semelhantes.
O comércio escravagista integrava fortes fatores políticos e ideológicos , econômicos e financeiros, bem como apostólicos, os quais se somavam e estruturavam o ímpeto de uma sociedade que se ergueu a partir da violência e opressão perpetradas no comezinho das relações cotidianas
por captores, negociantes transatlânticos, comerciantes e proprietários de terras nacionais, banqueiros, clérigos e subordinados e , de modo geral, pela população, que iam desde as humilhações, torturas corporais e psicológicas aos abusos sexuais e assassinatos em face de pessoas escravizadas e coisificadas, sob a pecha de não possuírem almas… Certo é que o sistema escravagista tornava possível, a partir do motor do trabalho escravizado e barato em condições inumanas, as economias baseadas nas plantações de cana de açúcar, tabaco e outros.
As “Leis da Abolição” (4), primeiramente a Lei Feijó, promulgada em 7 de novembro de 1831; após a Lei do Ventre Livre, de nº 2040 de 28.09.1871; a Lei dos Sexagenários, de nº 3.270 de 28 de setembro de 1885 e, por derradeira, a Lei Áurea, Decreto nº 3353 de 13 de Maio de 1888, não
importaram em construção de um processo de emancipação e cidadania para a população negra solta do cativeiro.
Essas Leis deveriam cumprir um papel de transportar para a história a conquista de liberdade e efetivação de cidadania plena para pretos e pretas, mas seus conteúdos e a forma como se efetivaram se traduziram verdadeiramente em uma célere desobrigação dos fazendeiros e outros
agentes políticos e financeiros/econômicos por um lado com o próprio sistema escravagista, visto que, diante da modernização industrial já iniciada na Europa, mais precisamente na Inglaterra, encontravam-se frente aos dilemas da modernidade e diante da cobrança internacional pela extinção da economia escravagista, urgia para a Europa que as Américas se tornassemmercados de consumo de seus produtos manufaturados- havia pressa que as colônias se tornassem mercado de consumo. Por outro lado, para a população negra a soltura do cativeiro representava para
a sociedade a miséria e a marginalização, e uma negação histórica de cidadania plena. Importante a reprodução ipse literis de um dos textos legais, da Lei do Ventre Livre (4), que demonstra a política de indenização aos senhores de escravizados e de trabalhos forçados dos escravizados como forma de indenização ao senhor, conforme a seguir:
“Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no
Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a
autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão
obrigação de cria-los e tratá-los até a idade de oito
anos completos. Chegando o filho da escrava a esta
idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do
Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos
serviços do menor até a idade de 21 anos completos.
No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe
dará destino, em conformidade da presente lei. A
indenização pecuniaria acima fixada será paga em títulos
de renda com o juro anual de 6%, os quais se
considerarão extintos no fim de 30 anos. A declaração do
senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar
daquele em que o menor chegar á idade de oito anos e,
se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo
arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor(…)”
(grifo nosso)
O que se observou foi a desmobilização acelerada dos descravizados dos cativeiros sem qualquer corresponsabilidade e/ou coobrigação entre os agentes políticos e econômicos e do Estado quanto aos custos, indenizações sequer pelos anos de trabalho forçado ou assistências aos escravizados(as). Deu-se a “abolição”, como se fosse um ato naturalizado ou mero ato formal pelo qual pretos e pretas passassem em um passe demágica a ser “cidadãos brasileiros”. A materialização da política de controle social adotada pelo Estado para a população negra cuja soltura do cativeiro ocorreu de forma abrupta e fincada na legislação brasileira, como percebemos pela redação do artigo 6º,
§ 5º da Lei do Ventre Livre (4), que demonstra de forma clara a política de Estado a ser adotada pós-soltura dos escravizados, que em síntese consistia em trabalhos forçados sob a pecha de não se tornarem marginais.
Art. 6º Serão declarados libertos:
§ 5º Em geral, os escravos libertados em virtude
desta Lei ficam durante cinco anos sob a
inspeção do Governo. Eles são obrigados a
contratar seus serviços sob pena de serem
constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar
nos estabelecimentos públicos. Cessará,
porém, o constrangimento do trabalho, sempre
que o liberto exigir contrato de serviço (…). (grifo
nosso)
O mesmo observa-se no texto da Constituição de 1891 (5), que, apesar da definição da igualdade formal entre os cidadãos, vide o artigo 72, § 2º (‘Todos são iguais perante a lei”), sem privilégios e distinções entre cidadãos, em seu artigo 70, § 1º veda que analfabetos e mendigos tivessem direito a voto e a ser votado, o que perdurou em outros textos constitucionais.
“Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21
anos, que se alistarem na forma da lei.
§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as
eleições federais, ou para as dos Estados:
1º Os mendigos;
2º Os analfabetos;(…) (grifo nosso)
O que nos conduz a reflexão e ao questionamento sobre quem seriam
no final do século XVIII os mendigos e os analfabetos na realidade do
cotidiano das cidades do Brasil?
O texto da Lei Áurea (4) igualmente exemplifica o ato de abolição
como mera formalização, considerado que é definido em dois artigos. Dá-se
a abolição em seu artigo 1º nos seguintes termos: “É declarada extinta
desde a data desta lei a escravidão no Brasil.”, sem que nada mais fosse
disposto acerca da mediação entre o cativeiro, a soltura e a pós-soltura
dos(as) escravizados(as) e, neste breve artigo não nos
deteremos a uma análise dos bastidores dessa Lei de tanto
impacto, mas, como esclarece matéria produzida pela
Agência do Senado brasileiro (2018) um projeto que foi
remetido pelo governo imperial ao Parlamento numa terça-feira. Os
deputados aprovaram o texto na quinta. Os senadores, no domingo. A lei foi
sancionada pela princesa imediatamente.
5
Não houve sequer oportunidade de uma transição que permitisse
erguer uma memória coletiva acerca do nefasto período da escravização,
que pudesse se constituir nos ecos de um lamento que fosse necessário
para a Sociedade, para o tratamento das feridas e chagas promovidas em
face da Humanidade da Nação que se fundava. Ou de forma mais pratica
políticas de inclusão, a título de indenizações, que materiais ou financeiros
pelos fazendeiros e empresas que lucraram com a escravização ou pelo
Estado. Ao contrário eram os pretos impedidos de votar, de obter terras e
até de frequentar escolar.
Ilustra-se, que a Constituição de 1824 definia a que a escola era um
direito de todos os cidadãos, todavia, a cidadania se estendia tão somente
aos portugueses, filhos de portugueses e libertos, e, os direitos dos
descravizados , soltos dos cativeiros, contudo, estavam condicionados a ter
rendimentos, posses e "a soma de oitocentos mil réis."
O silêncio sobre o período importou no alijamento nos debates e das
ações de reparação pelos 350 anos de pessoas sendo torturadas, abusadas
moral e sexualmente, assassinadas, morrendo de fome em lugares de
fartura (fazendas) e de maus tratos e doenças, de pessoas que foram
tratadas como objetos e animais.
A educação para pretos, no período entre 1860 a 1930,
pouco antes e durante a Primeira república, consistia quase
exclusivamente em utilitária, com a aprendizagem de
ofícios subalternizados, sem aprendizado de ler e escrever,
e, no sentido de que não se tornassem indolentes ou
perigosos, tornando-se esse o destino "natural" dos
“ingênuos”, como eram chamados os descravizados,
havendo neste período a incorporação de muitos homens
descravizados, para evitar a miséria, junto a corporações
como exército, constatou em eventos de guerra, como por
exemplo a do Paraguai, batalhões exclusivamente por ingênuos. O
Corpo dos Zuavos da Bahia ´é um destes batalhões, soldados sem botas e
de vestes esfarrapadas, que traduziam bem como o papel exercício por
estes,, ‘buchas”, que se trata de um termo militar bem antigo e diz respeito a
um amarrado de panos velhos colocado logo após a pólvora socada e antes
do projétil em canhões e armas antigas como mosquetes, armamentos em
linha de frente para os inimigos.
A Nação brasileira, nesse compasso, forjou-se sob uma cultura de
silêncio acerca do sacrifício das almas e corpos de pretos e pretas e este
silêncio tem um alto custo moral, ético e social, que se vê representado na
perpetuação de uma cultura que tem o racismo como eixo estruturante em
sua construção e nas violências estratégias de manutenção de um status
quo em que sejam ainda os “buchas’ a população preta na atualidade, em
uma recrudescida realidade de perpetuação da pobreza e aos papéis de
marginalidade, aos quais se encontrem relegados na sociedade,
sequestrados de uma cidadania plena.
RACISMO ESTRUTURANTE E PERPÉTUO PELO SILÊNCIO ACERCA DA VERDADE DO HOLOCAUSTO DA ESCRAVIZAÇÃO NEGRA
Sobre os papéis de pretos e pretas façamos uma reflexão sobre o que nos comunicam as imagens abaixo no tocante as condições de humanidade das condições de uma maioria demográfica da população na atualidade.
Ao observar a História que nos é contada nos bancos de escola, percebemos o silêncio em torno da verdade sobre a escravização preta no Brasil. Não há qualquer elaboração sobre o período de 350 anos de escravização por seu significado enquanto Holocausto, que se constitua por definição na “ (…) ação sistemática de extermínio por razões étnicas (…)” ou em “(…) uma matança massiva de seres humanos(…)” (6)
O silêncio acerca do Holocausto da escravização preta torna perpétua a intensa sobrecarga subjetiva da negação da verdade, que aprisiona, geração após geração, pretos e pretas à uma sobrevida nas bordas do sistema político-econômico e social, em sua grande maioria, invisíveis e sem acesso a direitos civis fundamentais, tais quais, identidades sociais, segurança humana, saúde, educação, trabalho, dentre outros, segregados ao eixo definido por alguns autores , como o professor Adalton José Marques, mestre em Antropologia Social e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) (7), como a franja do PPP (Preta, Pobre e Periférica).
Em um parênteses, oportuno dizer que mesmo pretos e pretas que escapam de um dos dois dos eixos da PPP, a partir de um forte apelo político-ideológico e acadêmico, que constrói a representatividade com base na meritocracia de que há lugar nestes espaços de poder o preto e para a preta que não é indolente, que não se vitimiza, que busca pelo trabalho árduo a conquista de seu espaço e integra a máxima de “no lugar em que um vence, qualquer um pode vencer o sistema”, encontram-se isolados, pois não há como se distanciar de um dos eixos do PPP, que seja de ser preto/a ou mesmo de se ser não – negro/a, quer pelas marcas (cabelo crespos, pelo negro ou escuro, nariz largo ou mais largo, lábios volumosos e etc) ou/e por sua ancestralidade (avós, pais, irmãos e irmãs etc) e história de vida, mesmo que se busque o manto do “direito do esquecimento de seu passado”.
O ativista Martin Luther King tratou acerca da perversidade da representação do único preto em meio a brancos, utilizando em um artigo escrito em 1962 utilizando a expressão “tokenismo”, cuja expressão token significa “símbolo” – esclarecendo que tal construção serve apenas para dar uma a comunicação de uma imagem falsa e de cunho imagem progressista, ou seja, de uma organização ou projeto que incorpora um número mínimo de membros de grupos minoritários e o faça para gerar uma sensação de diversidade ou igualdade. Todavia, tratou o ativista que não existe um esforço real para incluir essas minorias e dar-lhes os mesmos direitos e poderes do grupo dominante, existe ai uma finalidade que tem fundamento no racismo, de diluição das verdadeiras lutas de pretos e pretas, por participação e emancipação efetiva, de polarização de ideias e entre os pretos e pretas, assim como criação de um sentimento e um pensar distorcido de visibilidade de uma maioria demográfica representante pelo “token’ um único preto ou preta , ou um pequeno número de pretos ou pretas. Dispôs professor King, ainda, que tal construção estratégica e política das branquitude , ainda, tem a égide de criar e endurecer estereótipos de ‘super pretos’, “super pretas”, e criar pressão psicológica, moral e ética, se é possível para um por que não é possível para todos e todas.
Assim, não obstante, o racismo na atualidade não se expressar a partir da de idêntica sistemática do período escravagista, por exemplo, não há legislação na atualidade que defina sobre a escravização, ao contrário tal ato é crime. Ele se faz presente nas sobrecargas subjetivas e materiais das desumanidades praticadas, que se alongam, e, perduraram pelos séculos e aprisiona pretos e pretas , se ressignificando nos contextos.
Verificamos a segregação das gerações pretas a uma cidadania fantasma, que formalmente é produzida no discurso de ideias e político, mas que é negada diante da ausência ou de diluição na produção de políticas, ações e serviços pelo Estado, e cuja prova da ausência ou da diluição em razão da segregação promovida pelo racismo é de dificílimo fazimento, uma vez que criar critérios, parâmetros, que balizem provas de que o assassinato de um jovem preto, ou de uma geração de jovens pretos ocorrem sob manto da ausência e da mesma forma do abuso do Estado, em um sociedade que ainda emana o ideário da democracia racial, que compreende a integração por tokens como representatividade efetiva, constitua em esforço diabólico.
Na ausência dessas provas, ausenta-se a reparação para pretos e pretas, esvazia-se para a sociedade e a cultura brasileira a importância do papel dos negros vindos de África e de seus descendentes na construção dessa Nação.
A banalização do Holocausto da escravização preta no Brasil é expressa na negação do próprio racismo, que se evidencia quando verificamos o aceite social à violência e ao descaso em que se traduziram e traduzem as políticas públicas de embranquecimento da população preta e que perdura enquanto pensamento e ideologia política desde a imigração de europeus brancos e pobres, iniciada no final do século XVIII, perpassando a propaganda política e acadêmica de um país sem conflitos raciais: democracia racial.
Neste ponto do presente texto, importante a reflexão acerca do que nos comunicam as imagens abaixo no tocante ao reconhecimento, participação e igualdade de oportunidades de pretos e pretas nos poderes social , político , econômico e apostólico de pretos e pretas no Brasil (?)
O que nos comunicam as imagens acima diante da informação gerada pelo importante órgão público, o IBGE (08), em Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, de 2016, que revela uma população de 205,5 milhões, se auto- declararam pardos e negros , respectivamente , 95,9 milhões e 16,8 milhões, quer seja 112,7 milhões, o que corresponde a 54,84% da população, ou seja mais da metade da população se declara não branca. A representantividade de 54,84% encontra-se expressa nas imagens das autoridades máxima do Brasil? O que diz isto sobre a ideia expressa na “democracia racial”?
Restam, pois, a reflexão e os questionamentos, a partir do que comunicam as imagens e os dados do IBGE acima informados, que representam uma metalinguagem em que expomos o que é por si mesmo, e, que detém uma natureza mais imediata, mas exige de cada um de nós a partir de nossas reservas de pensamentos, experiências sociais, afetivas, culturais, relações, interesses e focos, a análise do que é expresso nesta realidade.
A grande pergunta é- por que o próprio preto não se enxerga aí o racismo? Segundo novamente o ativista Martin Luther King porque nos pretos não temos noção de quem somos. Mas, tal realidade encontra-se em transformação, e aprecio muito um pensamento do candomblé, que foi difundido no sentido de enfatizar esta mudança de compreensão de si pelos pretos e pretas, por um pensador da atualidade, na obra Amarelo – E tudo para Ontem- que diz – “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”.
Agora não se trata mais de se, mas de quanto tempo mais pretas e pretos estarão não representativos nos espaços de poder? Até quando a “pretitude” será diluída em expressões como parda (de pardal) , mulato, moreno, marrom bombom e outras expressões? Ate quando crianças e jovens pretos serão os corpos-alvos de balas do Estado?
JUSTIÇA REPARADORA E A DEMANDA POR UM
NOVO PACTO SOCIAL
Não há como negar que ações de reparação referentes a escravização negra estejam sendo erguidas pelo Mundo, entre estas a recente Declaração pela ONU da Década Internacional dos Afrodescendentes – 2015-2024 (9), que em seus eixos convoca os Estados e aos atores sociais para o exercício de uma Justiça de Reparação e a implementação de um novo pacto social em combate ao racismo , da segregação e a discriminação racial.
No Brasil, nos últimos 15 anos, observamos a abertura de processos de reparação, os quais possamos apontar sem necessidade de maiores análises, a adoção de medidas especiais, como o sistema de cotas raciais em universidades públicas, que encontra amparo em legislações em nível federal e estadual, citando-se a Lei 12.711/2012 (10). Igualmente, a validação da política de quotas a partir de decisões do Supremo Tribunal Federal, que vem autenticando a constitucionalidade do sistema de quotas, vide julgamento do Recurso Extraordinário (RE 597285) (11), com repercussão geral.
No mesmo sentido, o reconhecimento na Constituição Federal de 1988 (12) em face dos crimes raciais e da imprescritibilidade destes e o recentíssima superação do que sempre entendi como uma “esquizofrenia jurídica em agessão a constituição” com a aplicação da impresctibilidade ao crime de injúria racial, Habeas Corpus (HC) 154248 , posto que racismo.
“Art. 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (grifamos).
Outrossim, temos a criação de equipamentos tais quais as Delegacias especializadas em crimes raciais que vêm paulatinamente sendo estruturadas nos Estados, como verifica-se pelos Decreto nº 18 de 21 de agosto 2018 da Secretária de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro(13), que aumenta orçamento para criação da DECRADI na Capital do RJ (14). E mais, o reconhecimento constitucional de identidades e práticas de cultura afrodescendentes, inclusive religiosas, como verificamos na demarcação de terras quilombolas , com amparo no art. 68 da ADCT, cujo debate ecoou pelo Brasil em 2018 , com o julgamento da ADI 3239 do Distrito Federal (15), em que a Suprema Corte reconheceu a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 (16) , assim como no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 494.601(17) que, por decisão unânime e de repercussão geral, julgou que o sacrifício de animais em cultos religiosos de matriz africana são constitucional.
Observamos, também, a recente Lei nº 6613, de 13 de Junho de 2019, publicada pela Câmara de Vereadores do Município do RJ (18), que estabelece exigências de reparação pelos crimes de escravidão, a demarcação da área urbana como território histórico para preservação de memória da presença do africano liberto e alforriado e seu local de trabalho e moradia na cidade do Rio de Janeiro.
Entre outras ações especiais, com vista à construção de uma Justiça de Reparação, também vêm sendo erguidas por Instituições Democráticas, e que sem dúvida, constituem-se em busca de reparação aos corolários da escravização negra. Certo que ainda não suficientes diante das demandas internalizadas pelo holocausto do sistema de escravização e seus efeitos e silêncios a humanidade preta e considerando que até a atualidade sequer houve uma declaração formal de pedido de perdão pelo Estado Brasileiro, mesmo diante da consolidação a partir de 1986 da Democracia, restando claro que há ainda um longo caminho a ser percorrido pela pedra tacada por Exu
Amplo é, pois, o debate das teses de reparação, nos âmbitos nacional e internacional e, por certo, para além das ações afirmativas expressas nas quotas em universidades , a reparação , a qual buscaremos tratar em outros artigos, integra à discussão acerca de indenizações pecuniária/financeiras aos descendentes de escravizados negros(as) de África, e mesmo, em sua face mais radical a liberdade de decisão pela separação e constituição de um Estado fundado por uma nação de afro descendentes, e pretendemos, pois nos encontramos implicadas pela própria noção de nós mesmas , enquanto mulher e preta, realizar nossa pequena contribuição sobre esta matéria que, além de complexa, constitui-se polêmica e necessária ao rompimento do silêncio e para a construção de um novo e forçoso pacto social .
E mais, tratar da reparação da escravização negra de África é uma prioridade ético-política de toda nós afro descendente nas américas, no Brasil, mesmo que ainda não consciente do fato de ser preta e que encontra sua síntese, enquanto expressão de luta nas palavras do líder e ativista do movimento negro americano, Malcolm X de que “Não lutamos por integração ou por separação, lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos”.
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- BRASIL. Gabinete de Intervenção Federal/GIRF. Estado do Rio de Janeiro. “Atos Normativos e a Identificação com os Objetivos Estratégicos Constantes no Plano Estratégico da Intervenção Federal na Área de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Publicado em 2019. Vida fls. 15, GIRF – OE-05, item 4. Disponível em http://www.intervencaofederalrj.gov.br/arquivos/atos-normativos-relacionados-aos-ojetivos-estrategicos.pdf . Acesso em 05/08/2019
- BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Matéria “MPRJ obtém do governo do RJ a instalação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI). Publicada em 05/10/2018 12:11 – Atualizada em 05/10/2018 . Disponível em https://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/65904?p_p_state=maximized Acesso em 05/08/2019.
- BRASIL . Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade / ADI: 3239 DF – Distrito Federal Processo: 0002247-26.2004.1.00.0000, Relator: Min. Cezar Peluso, Data de Julgamento: 08/02/2018, Tribunal Pleno. Assunto: Procedimento para Identificação, Reconhecimento, Delimitação, Demarcação e Titulação das Terras Ocupadas por Remanescentes das Comunidades dos Quilombos. Ato Normativo Autônomo. Art. 68 do ADCT. Disponível ementa e inteiro teor em https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/768110447/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3239-df-distrito-federal-0002247-2620041000000/inteiro-teor-768110511?ref=juris-tabs Acesso em 03/08/2019
- BRASIL . Decreto nº 4.887 , de 20 de Novembro de 2003. Assunto: “Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombolas de que trata o art. 68 do Ato das Disposição Constitucionais Transitórias”.Disponível ementa e inteiro teor em https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/768110447/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-3239-df-distrito-federal-0002247-2620041000000/inteiro-teor-768110511?ref=juris-tabs Acesso em 03/08/2019
- BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 494.601 – RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Origem: Rio Grande do Sul . Ministro Relator : Marco Aurélio. Ministro Redator do Acórdão: Edson Fachin . Julgamento em 28/03;2019. Publicado 12.11.2019. Assunto: Direito Constitucional. Proteção Meio Ambiente. Liberdade Religiosa. Lei 11.915/2003 do Estado do Rio Grande do Sul. Norma que Dispõe sobre o Sacrifício Ritual em Cultos e Liturgias das Religiões de Matriz Africana. Disponível inteiro teor do Acordão em http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/autenticarDocumento.asp sob o código 6555-8262-8A07-C45F e senha 6FD8-67A8-C116-6F93 . Acesso em 03.08.2019
- BRASIL. Lei nº 6.613 , de 13 de Junho de 2019. Assunto: “Estabelece normas, como exigência de reparação pelos crimes de escravidão, a demarcação da área urbana como território histórico para preservação de memória da presença de memória da presença do africano liberto alforriado e seu local de trabalho e moradia na Cidade do Rio de Janeiro”. Disponível em https://leismunicipais.com.br/a1/rj/r/rio-de-janeiro/lei-ordinaria/2019/662/6613/lei-ordinaria-n-6613-2019-estabelece-normas-como-exigencia-de-reparacao-pelos-crimes-de-escravidao-a-demarcacao-da-area-urbana-como-territorio-historico-para-preservacao-de-memoria-da-presenca-do-africano-liberto-e-alforriado-e-seu-local-de-trabalho-e-moradia-na-cidade-do-rio-de-janeiro . Acesso 03.08.2019.
- BRASIL. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil/CFOAB. Notícias. “OAB cria Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil.”. Publicado em 3 de novembro de 2014 . Disponível em https://www.oab.org.br/noticia/27772/oab-cria-comissao-nacional-da-verdade-da-escravidao-negra-no-brasil Acesso em 03.08.2019.





